por José Prata Araújo
Nosso sistema político-eleitoral é, no fundamental, anti-republicano, desagregador, gerador de crises e de instabilidade política: o mandato parlamentar é individualizado, o que leva a uma monumental fragmentação política; os partidos são, com raras exceções, ficções cartoriais e muitos não passam de legendas de aluguel; não existe fidelidade partidária, sendo o troca-troca partidário a regra no País; a política é brutalmente profissionalizada desde as Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e no Congresso Nacional, com a possibilidade de contratação de um grande número de profissionais da política, além da existência de verbas diversas; a individualização dos mandatos torna as campanhas excessivamente onerosas, e o financiamento privado de campanha é realizado principalmente através de caixa dois; a dispersão das campanhas eleitorais inviabiliza a fiscalização pela Justiça Eleitoral. O impacto desse sistema político-eleitoral na gestão pública é dramático.
O que temos não são governos de coalizão partidária nos Municípios, nos Estados e na União. Sem partidos consolidados, e com a prevalência da representação individualizada, temos, em verdade, “governos do varejão político”, nos quais a estabilidade fica dependente da distribuição de cargos e da liberação das emendas para obras paroquiais. Isso desprofissionaliza o Estado brasileiro e desvia bilhões de reais para obras de prioridade e necessidade altamente questionáveis. Já o financiamento privado das campanhas eleitorais estabelece uma promiscuidade entre o público e as empresas privadas, especialmente aquelas que tem negócios, direta ou indiretamente, com o setor público.
Quem defende a ética na política precisa defender também uma reforma política democrática. Não se pode esperar que o comportamento ético na política – que é fundamental – seja resultado unicamente de posturas individuais; a ética na política, concordando com a filósofa Marilena Chauí, depende, acima de tudo, da qualidade das instituições democráticas e republicanas. Disse ela: “Não se trata de afastar ética e política, mas de pensar a diferença entre ética individual/privada e a ética política/pública.
Um dos filósofos modernos que melhor realizou essa distinção foi Espinosa. Estudioso das paixões humanas (que, ao contrário de várias tradições filosóficas e religiosas, ele não considera vícios nem defeitos da natureza humana, mas algo tão natural como o ar, a água, os raios e trovões), Espinosa afirma que é ficção e loucura querer que os governantes ajam como se não tivessem paixões e interesses, como se fossem a encarnação perfeita das virtudes privadas – querer isto seria o mesmo que querer que eles deixassem de ser humanos, tornando-se anjos.
Onde se encontram os princípios da ética pública? Na qualidade das instituições republicanas e democráticas. São as instituições que devem ter o poder de cercear e impedir que as paixões (os interesses) pessoais dos governantes tenham força para esmagar, ferir ou bloquear os direitos dos governados” (Leituras da crise, Editora Fundação Perseu Abramo).
Considero estas conclusões de Marilene Chauí decisivas para se compreender o nosso sistema político e para melhorá-lo radicalmente nos próximos anos. Corretamente se considera, como algo normal, a existência de “paixões e interesses individuais” na vida política; e que o melhor meio de limitá-los é através de instituições consolidadas.
O nosso sistema é nitroglicerina pura: as ambições individuais na sociedade brasileira se expressam na vida política e na gestão do Estado de forma direta, através da personalização do mandato (lista aberta nas eleições proporcionais e cargos majoritários exercidos sem vinculação partidária), sem a mediação de instituições coletivas e democráticas, que são os partidos.
Na democracia não se têm atalhos: os partidos são as instituições fundamentais e precisam ser fortalecidos, como forma de expressão dos grandes projetos políticos e ideológicos da sociedade. Quem quiser entrar na política, precisa se definir do ponto de vista político e ideológico, escolher uma agremiação política e nela disputar os rumos de sua direção. Esse é o melhor meio de conter o insuportável aventureirismo político de nosso sistema político-eleitoral.
Na reforma política, outro ponto central do debate será a escolha entre o sistema proporcional ou o sistema majoritário (voto distrital). Sou adepto do sistema proporcional puro com voto em listas partidárias, com financiamento público de campanha e fidelidade partidária, tal como foi formulado pela Comissão de Reforma Política da Câmara dos Deputados.
Neste sistema, o eleitor não votará mais para vereador, deputado estadual e deputado federal em nomes individuais, mas na lista partidária de sua preferência. Por isso, o voto em listas partidárias modificará profundamente nosso sistema político-eleitoral. Os partidos serão muito fortalecidos como instituições agregadoras de interesses sociais, enfraquecendo o enorme corporativismo e individualismo do sistema de listas abertas.
Somente a lista partidária é coerente com a fidelidade partidária porque o parlamentar será eleito por uma chapa do partido, ao contrário do sistema atual onde os votos são dos candidatos individualmente e, por conseqüência, o próprio mandato. Poderemos ter no País, finalmente, governos de coalizão e programáticos, baseados nos partidos, criando as condições para a ruptura com os governos do varejão político atual.
As disputas serão intensas nos partidos para definir o ordenadamento da lista, mas, depois da decisão, ao contrário do autofagismo do sistema atual onde o adversário de um candidato é outro candidato do mesmo partido, a disputa será com a lista dos partidos adversários, o que politizará a eleição proporcional. Além disso, teremos uma maior politização da eleição proporcional, porque a lista partidária unificará a campanha proporcional e majoritária numa única campanha em torno de grandes projetos políticos.
O Legislativo será fortalecido porque as listas representarão, de forma proporcional toda a sociedade, ao contrário do sistema atual onde os parlamentares eleitos representam diretamente, através de seus votos, apenas 1/3 do eleitorado e, nas Câmaras Municipais, não supera 20% dos eleitores (os demais eleitores “perdem” o voto).
O acompanhamento da população de seus representantes será facilitado, porque a lista dificilmente será esquecida, ao contrário do sistema atual que, pela sua enorme fragmentação, leva que a grande maioria do eleitorado, num curto espaço de tempo, simplesmente não se lembre em quem votou. A redução radical do tamanho das campanhas é a única possibilidade de adoção do financiamento das campanhas e para uma efetiva fiscalização da Justiça Eleitoral porque, ao invés de milhares de candidatos em todo o País, teremos algumas poucas centenas de listas eleitorais.
As cotas de mulheres, e eventualmente de etnias, ganham um grande impulso com as listas partidárias, porque a representatividade de mulheres e negros deixa de ser uma questão apenas destes segmentos e vira uma questão de todos. Finalmente, a adoção das listas partidárias abre espaço para uma reforma do Estado, com o fim ou a redução drástica das emendas individuais aos orçamentos; se tornará dispensável grande parte dos funcionários de gabinete individualmente, que poderão ser substituídos por uma estrutura mais enxuta e coletiva (como as assessorias de bancada do PT); e, voltados para os grandes projetos políticos nacionais, poderemos cobrar dos partidos o fim do aparelhamento do Estado representado pela nomeação de milhares de servidores para os cargos de chefia e assessoramento no serviço público.
Como se vê, uma reforma política nestes termos poderá revirar de cabeça para baixo o nosso sistema político-eleitoral. Por isso, não será fácil aprová-la. Ela encontrará enormes resistências nos parlamentares que, eleitos com base no sistema de listas abertas, terão dificuldades de renovar seus mandatos num quadro de maior partidarização de nosso sistema político. A reforma não conta com o apoio do empresariado e da mídia, por uma razão simples: o financiamento público de campanha reduz o controle que os capitalistas têm sobre o sistema político, que é exercido com o financiamento privado no Brasil realizado quase integralmente pelas empresas. A elite, de forma demagógica, é contra o financiamento público de campanha, alegando preocupações sociais, como no irritante argumento do jornal Folha de S. Paulo: “O financiamento publico seria desviar verbas das políticas sociais para uma área onde o dinheiro privado não falta”. E o mais complicado: a população, formada no atual sistema político, é também, majoritariamente, contra o voto em listas partidárias e o financiamento público de campanha.
Muitos estudiosos são contra a reforma política, por considerá-la ineficaz para o enfrentamento da corrupção, como é o caso do cientista político Fabiano dos Santos: “O problema da corrupção e a proliferação de escândalos é fenômeno comum a todos os sistemas políticos nos quais os seguintes ingredientes se encontram associados: capitalismo, setor público ativo na economia, democracia com sufrágio universal, além de partidos em busca de financiamento para campanha (…) Ou seja, a corrupção é um problema em todos os lugares em que capitalismo convive com democracia, independentemente do sistema político adotado. Os países que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles que aperfeiçoaram as instituições de controle, como ouvidoria, Ministério Público e Tribunal de Contas. Não creio que estejamos indo mal nesse aspecto” (Correlação espúria, Folha de S.Paulo, 30/10/2006). É evidente que corrupção acontece em todos os países, não somente capitalistas, mas também socialistas. Reforma política não é a salvação da pátria. Mas acredito que o fortalecimento dos partidos e o financiamento público de campanha são condições fundamentais, senão para eliminar a corrupção, mas para a sua diminuição expressiva.