Haiti: as vozes além da tragédia têm outra versão para o caos

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Foi preciso um terremoto para que o Haiti fosse visto pelo mundo. No entanto, antes disso já havia luta e sofrimento de um povo que resiste, num país abandonado à pobreza e à exploração.
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“Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui”
(“Haiti”, Caetano Veloso e Gilberto Gil)

A letra de 1993 composta por Gil e Caetano compara as violências sofridas pelos brasileiros marginalizados às sofridas pelo povo do Haiti, país considerado o mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo. Hoje, após as imagens chocantes do terremoto de 7 pontos na escala Richter que atingiu o país na tarde da última terça-feira, 12 de janeiro, “Pense no Haiti, reze pelo Haiti” é quase um mantra, repetido no mundo inteiro.

O terremoto, o maior na ilha nos últimos 200 anos, teve seu epicentro a poucos quilômetros da capital, Porto Príncipe, e especialistas afirmam que a enorme destruição foi favorecida pela pouca profundidade do tremor – cerca de 10 km da superfície. O tremor derrubou prédios públicos, a sede da ONU e o palácio presidencial, e a Cruz Vermelha estima que 3 milhões de pessoas foram afetadas pela tragédia. Jean-Max Bellerive, premiê do Haiti, disse à rede de notícias americana CNN nesta quarta-feira, dia 13, que teme que o número de mortos supere 100 mil pessoas – dentre estes mortos estavam Zilda Arns, médica e fundadora da Pastoral da Criança, e 14 militares brasileiros, integrantes das tropas da ONU.

Foi preciso uma tragédia para colocar o Haiti no centro das atenções do mundo, mas o país e seu povo já sofrem há anos com a exploração de outros países e com a ocupação de forças militares. As tropas que atualmente estão no país abarcam majoritariamente soldados do Brasil, Argentina, Bolívia e Chile – eles formam a Força Militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). Uma vez que o Haiti não possui exército próprio e o efetivo de sua polícia é diminuto, estas tropas também têm sido responsáveis por ajudar no resgate das vítimas do terremoto. No entanto, relatos de pessoas presentes no país contam outra versão de suas ações.

O outro lado das missões humanitárias

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Um destes relatos vem de pesquisadores de História e Ciências Sociais da Unicamp, que estão no país desde novembro de 2009 e mantém um blog sobre o dia a dia da “Pesquisa de campo em antropologia, conflito e pós-conflito: o caso haitiano” – nos últimos três dias, porém, o blog versa sobre a situação pós-terremoto. Um dos pesquisadores, Otávio Calegari Jorge, descreveu a situação da seguinte forma: “O que presenciamos ontem [12] no Haiti foi muito mais do que um forte terremoto. Foi a destruição do centro de um país sempre renegado pelo mundo. Foi o resultado de intervenções, massacres e ocupações que sempre tentaram calar a primeira república negra do mundo”.
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Calegari continua sua descrição da tragédia comentando a atuação das tropas militares da ONU: “Hoje, dia 13 de janeiro, o povo haitiano está se perguntando mais do que nunca: onde está a Minustah quando precisamos dela? Posso responder a esta pergunta: a Minustah está removendo os escombros dos hotéis de luxo onde se hospedavam ricos hóspedes estrangeiros”. Outro pesquisador do grupo, Werner Garbers, afirmou em postagem anterior, no mesmo dia 13, que “a situação está se complicando: saindo às ruas em busca de água, o pessoal viu muitas pessoas feridas na rua, mortas, casas desabadas e pessoas retirando os escombros, além de briga por comida, saques, um tiroteio, e o pior, aparentemente, tudo isso sem a presença de nenhum tanque, carro ou oficial da ONU”. Retratos de um dos primeiros países a conquistar a independência na América Latina, depois de anos de pobreza e repressão.
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Resistência contra a exploração
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O Haiti foi palco da primeira revolução negra da História e da primeira revolução anticolonial na América Latina, em 1804. Um dos motivos centrais para que a revolução haitiana fosse vitoriosa foi que sua base social era formada por um tipo diferente de escravos, que, concentrados em grandes fazendas produtoras de cana-de-açúcar, se aproximavam da condição do proletariado agrícola, o que lhes deu uma consciência coletiva para agir e alcançar a vitória. Quem conta a passagem acima é Eduardo Almeida Neto, editor do jornal Opinião Socialista, que esteve na país por duas vezes – uma em 2007, com uma delegação da Conlutas, e a última em dezembro de 2009, quando deu uma palestra na universidade da capital Porto Príncipe.

Os relatos de Almeida Neto estão condensados nas “Cartas do Haiti”, um diário dos sete dias em que permaneceu no país. Suas descrições das condições da população, mesmo antes do terremoto, não diferem em muito daquelas dos pesquisadores da Unicamp. As áreas pobres das cidades não têm água, esgoto, ou luz. A TV, artigo quase obrigatório até nos lares mais simples no Brasil, lá é quase inexistente, assim como jornais, restritos a hotéis e alguns pontos turísticos. “O desemprego atinge em Porto Príncipe entre 70-80% da população. O salário mínimo da indústria têxtil (o setor de ponta) é quase quatro vezes menor que o brasileiro. O analfabetismo atinge 90% das pessoas. Ler e escrever não são necessários para a vida comum. A comunicação entre as pessoas já parte da realidade de que ninguém sabe ler”, escreve o jornalista.

Muitos haitianos trabalham nas indústrias têxteis, atraídas para o país pelas isenções de impostos e mão-de-obra barata (mais barata que a chinesa) – são empregados de marcas como Wrangler, Nike e Levi’s. O relato de Eduardo descreve algo que enche os operários do país de orgulho: a luta pelo aumento do salário mínimo de 75 para 200 gourdes (moeda haitiana). A mobilização começou em maio de 2009, com protestos em frente ao parlamento e uma greve foi deflagrada, levando às ruas entre 10 e 15 mil operários, que faziam passeatas diárias que iam da zona industrial ao parlamento ou ao palácio do presidente.

Muitos foram demitidos após a greve – mesmo assim, não desanimaram. “A classe operária haitiana foi à luta e foi derrotada. Mas tirou dessa mobilização conclusões muito importantes sobre o papel de Préval [René Préval, presidente do Haiti] e da Minustah. Pichações contra o governo e as tropas inundaram os muros do país”, escreve o editor do Opinião Socialista. Infelizmente, depois de contar seus mortos e feridos, é provável que o povo haitiano retorne ao limbo da grande imprensa, que mostra um país de gente dócil e agradecida pela presença militar. Ao restante do mundo, resta lembrar que há mais fontes de informação e que a verdade nem sempre é a dita oficial.

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