Por Valério Ferreira*
Imagine-se o pavor que não sentiríamos se nossos filhos tivessem de crescer em um ambiente igual ao que vigorava na Idade Média, sob a sombra do cajado da Inquisição. Pensemos então se não existisse o Estado de Direito e tivessem de viver subjugados pela tirania dos “donos do poder”, rezando para pelo menos serem governados um dia por um “déspota esclarecido”. Parecem fatos quase surreais, não fossem uma realidade já bastante concreta em tempos passados que, vira e mexe, torna a assombrar-nos quando aqueles que deveriam, repito “deveriam” proteger as leis e a Constituição distorcem-nas ou esquecem-nas simplesmente com a eterna desculpa do “interesse público”. Afinal de contas, o que é esse tão falado “interesse público”?
Nos últimos dias, “o TST (…) editou um Ato interno determinando o corte dos salários dos grevistas do tribunal, onde a greve é forte. (…) servindo de exemplo para truculentos donos de empresas, (…) seguindo a cartilha da repressão. (?) O ânimo repressivo contra trabalhadores que lutam por seus direitos se manifesta na expressa ilegalidade das orientações e lembra as reações patronais às lutas de classe no final do século IX. (?) Em duas ações ajuizadas no STJ a AGU pede que seja suspensa a greve dos servidores do Poder Judiciário Federal (…) em todo o território nacional. Nos dois casos, em suma, pede que seja suspensa a parte da Constituição Federal que assegura a todos os trabalhadores inclusive servidores públicos o Direito de Greve! (…) As ações contra a Fenajufe e o Sindjus-DF pedem a decretação liminar da ilegalidade da greve nos dois ramos do Judiciário Federal (…) alegando que a greve atenta contra o Estado Democrático de Direito e deve-se aplicar o princípio do interesse público sobre o privado”. (Fonte: FENAJUFE).
O “interesse público” é algo tão subjetivo que fica à mercê das mais diversas interpretações possíveis, tanto políticas quanto judiciais, sem que a sociedade, a verdadeira ?interessada? opine sobre o que é seu verdadeiro interesse. No caso da greve dos servidores do poder judiciário, qual seria o maior interesse público? O respeito à Constituição da República, a qual assegura o direito de greve aos servidores públicos, ou a truculenta reação do TST e AGU a esse direito? O que é de maior “interesse público”, o desrespeito às leis para se garantirem interesses administrativos ou a salvaguarda dos direitos e garantias individuais e do direito de greve a todos da sociedade? Bem se sabe que, uma vez desrespeitada uma lei sob a anuência dos representantes do Estado, que deveriam ser seus maiores guardiães, essa lei se torna inócua e o Estado desmoralizado, criando-se o precedente para que a lei seja novamente desrespeitada em outras situações e, assim, num círculo vicioso, a própria Constituição se tornará ineficaz, pois as diversas interpretações políticas, administrativas e judiciais serão mais importantes que a lei formal, descaracterizando por completo o Estado de Direito, recriando-se o Sistema Inquisitório.
Seria “interesse público” servidores judiciários mal remunerados, acuados, reprimidos e sem direito à greve? Juízes podem fazer a Justiça sem os servidores? Podem também os advogados? Se a resposta é não, por que as associações dos magistrados não apoiam declaradamente o movimento dos servidores? Por que a OAB também não apoia esse movimento grevista, quando o Estado de Direito é frontalmente agredido e ameaçado, na medida que a Constituição é esquecida e o direito de toda uma classe é aviltado, mutilado? Independência judiciária significa liberdade jurisprudencial e força política ou uma máquina judiciária forte e independente, com servidores preparados e bem pagos? Não seria a independência judiciária fruto da altivez de seus serviços, gerando essa força política que sustenta esse pilar da República?
Cabe a luta, nunca a resignação. Estamos vivendo um período sombrio, de retrocesso dos direitos constitucionais e cabe-nos evitar a derrocada do Estado de Direito, tão sofrido de se conseguir pelo martírio e obstinação de muitos na história do Brasil.
*Valério Ferreira é servidor da Justiça do Trabalho na cidade de Congonhas, Minas Gerais.