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Quando , em 1964, o Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de habeas corpus em favor de um certo deputado federal acusado de ser comunista, determinando a sua imediata soltura, a ordem foi encaminhada ao gabinete da Presidência da República , ocasião em que um dos assessores do presidente Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco indagou-lhe se era para cumprir a ordem , tendo este respondido: “Se o meu governo não acatar uma ordem do Supremo Tribunal, a mais alta corte de Justiça deste país, ele não terá legitimidade para governar”. A ordem foi cumprida e o deputado posto em liberdade. Tudo isso ocorreu em pleno regime militar, logo após o golpe de estado de l964.
Volvidos mais de cinquenta anos, eis que o país se depara com um dos seus maiores impasses a ameaçar a ordem constitucional e ferindo de morte as instituições republicanas. Como se sabe, o ministro Marco Aurélio, do STF, determinou o afastamento liminar do presidente do Senado, Renan Calheiros, no bojo de uma ação impetrada pela Rede de Sustentabilidade em que se argui que não poderia ele continuar no cargo, uma vez que se acha na linha sucessória da presidência da República e responde a inúmeros processos , sendo que, em um deles , se tornou réu. Em julgamento anterior de outro processo, o mesmo STF, por maioria de votos, já havia decidido pela impossibilidade de que isso pudesse ocorrer, vale dizer, que alguém , sendo réu em processo criminal, pudesse permanecer no cargo, uma vez que estivesse na linha sucessória para a presidência da república. Em outras palavras, não pode assumir a presidência quem tiver antecedentes criminais, ou, pior, for réu em processo crime.
Apesar da decisão do Ministro Marco Aurélio, a ordem judicial foi descumprida, já que o senador Renan recorreu à mesa diretora do Senado que, por sua vez, declarou que aguardará o referendum do plenário do STF para somente então cumprir a ordem.
Creio que , com isso, assistimos perplexos à total desmoralização do Supremo Tribunal Federal, e, em especial, do ministro Marco Aurélio. Como se tanto não bastasse, “o corajoso” senador, entrevistado por emissoras de televisão, ainda se deu ao despautério de fazer blague com o ministro, menosprezando-o e desmoralizando-o por inteiro.
Sempre ensinei aos meus alunos nas faculdades que ordem judicial é para ser cumprida, ainda que ilegal ou emanada de autoridade incompetente. Foi assim que também aprendemos. Assim é o direito vigente, ensejando até mesmo a prisão de quem a descumpra. Se alguém por acaso não concordar com ela que recorra, mas, antes, que a cumpra, sob pena de desobediência. Mas, não foi o que vimos. O Supremo Tribunal se agachou, se apequenou ao não determinar, até por meio de coerção legal, que a sua ordem fosse respeitada. O ministro Marco Aurélio, de cuja autoridade partiu a ordem, tinha por dever fazê-la cumprida, até porque, se não tem o poder de coercio ou, por outra, de executio, que não determinasse o afastamento. Ao fazê-lo e, ao mesmo tempo, permitir que sua ordem fosse desrespeitada, enfraqueceu-se, desmoralizou-se, perdeu o poder que a sua toga lhe impõe, como juiz de última instância, membro da mais alta corte de justiça do país.
Por outro lado, de que adianta a presidente do Supremo dizer, num arrobo de oratória, que se mexerem com um juiz estarão mexendo com ela, se não foi enérgica o suficiente para defender a autonomia, a soberania, a altivez, do poder que representa e dirige?
Fala-se, e a imprensa especula, que poderá haver uma mediação para encontrar-se uma saída que contemporize a situação e o presidente Renan não seja afastado. Se isso ocorrer realmente será a falência total do Poder Judiciário, a capitulação de sua autoridade, a sua renúncia à condição de guardião da constituição. Que o Supremo Tribunal passe então a se ocupar de casos sem importância, condenando réus miseráveis, sem poder de reação ou de influência, já que não consegue enfrentar poderosos do quilate do onipotente senador que se acha sentado na cadeira presidencial do Senado Federal.
Ao recuar, ao soçobrar, ao titubear, ao arrefecer, ao esmorecer que lição dá o Supremo Tribunal Federal aos juízes brasileiros de norte a sul? Que suas ordens podem ser descumpridas, desrespeitadas e que nada irá acontecer? De outra banda, que recado a mais alta corte de Justiça do país dá aos poderosos da nação brasileira? Que podem descumprir ordens judiciais e que nada lhes acontecerá? É esse o exemplo que o Supremo quer timbrar na alma do povo brasileiro? De que adianta demonstrar poder com os menos favorecidos, os pequenos criminosos, os hipossuficientes que cometem crimes comuns, impondo-lhes suas ordens judicias, determinando-lhes a obediência cega às leis do país e as suas decisões, se recuam diante do rosnar enfurecido do criminoso que detém o poder e sabe usá-lo em proveito próprio com a maestria dos grandes mafiosos?
Quando , na obra de Edmond Rostand, tentaram encurralar Cyrano de Bergerac, achando que ele havia arrefecido o ânimo, ele reagiu, repelindo com veemência os insultos e, com isso, recuperando a sua dignidade.
No episódio a que estamos assistindo, o Supremo Tribunal perdeu a oportunidade de reagir e resguardar a sua dignidade, ainda que venha a fazê-lo depois, acaso o plenário referende a decisão do ministro Marco Aurélio.
Amanhã jamais será hoje, e, por certo, o tempo já terá passado. Faltou ao Supremo a firmeza, a presteza no decidir, a independência, a altivez moral, a coesão, a sabedoria necessária para prestigiar a decisão de um de seus integrantes, assim como faltou ao ministro Marco Aurélio a firmeza, a coragem, o desassombro de fazer valer uma decisão de sua relatoria que, certa ou errada, tinha que ser cumprida sob pena de arrastar consigo uma vasta tradição de uma Corte que, nos momentos mais cruciais por que já passou a nação brasileira, jamais estremeceu ou deixou de cumprir com o seu papel que a Carta Magna lhe reserva.
Diante de tudo isso, não tenho receio de afirmar que a mais alta corte de justiça deste país foi conspurcada na sua autonomia ou, por outra, conspurcou-se num ato autofágico que enlameia a sua história de corte constitucional, e de resto, deixa borrifar em todo o judiciário brasileiro os respingos de sua inércia temerosa, em face de tamanha e despropositada agressão por alguém que tem em seu boletim de antecedentes nada menos do que 11 ações criminais, com a agravante de que, em uma delas, já existe denúncia recebida transformando-o em réu.
Recuar , como o fez a alta Corte, significa abrir mão de sua independência e fazer tábula rasa de sua dignidade.
Não é este, por certo, o Supremo que desejamos. Não é este, certamente, o Supremo que a nação brasileira merece.