Por Alan da Costa Macedo, Bacharel em Direito pela UFJF; Pós-Graduado em Direito Constitucional, Processual, Previdenciário e Penal; Servidor da Justiça Federal, lotado na 5ª Vara da Subseção Judiciária de Juiz de Fora-MG.
AB INITIO
No dia 18 de julho de 2014, foi protocolizado um requerimento junto ao TRE-MG pleiteando providências acerca dos eventuais “desvios de função” por parte dos Técnicos Judiciários lotados nas Zonas Eleitorais do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.
Tamanha foi a repercussão de tal requerimento que resolvi fazer a análise técnica daquele expediente, a fim de que ficassem esclarecidas algumas nuances que, sem uma devida análise, tornam-se objeto de discórdia entre os servidores pertencentes às carreiras; enquanto, num momento crucial para revisão dos nossos salários, deveriam estar mais unidos do que nunca.
Vou fazer, aqui, comentários de alguns argumentos lançados no citado requerimento, deixando claro que este artigo está dentro de minha esfera Constitucional da “livre manifestação do pensamento”.
DOS FATOS E DO DIREITO
No primeiro parágrafo do requerimento:
“É de conhecimento geral o fato que recentemente o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), por meio de sua Conselheira Déborah Ciocci,
vem recomendando a todos os Tribunais pátrios o sistemático
levantamento e combate às situações que
envolvam servidores em desvio de função”.
É muito bom, tanto para os Técnicos quanto para os Analistas Judiciários, saberem que a própria Administração Pública reconhece expressamente que tal situação é sistemática e que algo precisa ser feito sobre o assunto. Tal reconhecimento só reforça a necessidade de Valorização das carreiras, uma vez que o problema já foi identificado pelos Tribunais e, inclusive, pelo seu órgão de fiscalização.
Se o fato já é de conhecimento público, providencias devem ser tomadas, não só para que o erro seja corrigido, mas também para que o dano verificado seja devidamente indenizado. Lembremo-nos do velho dito popular: “Casa de ferreiro não pode ter espeto de pau”.
Em seguida:
“Também é de consenso geral que as atribuições exercidas pelos
servidores do Poder Judiciário estão sofrendo significativas
modificações, com a crescente modernização da Justiça,
mormente pela instituição do processo judicial eletrônico e pela
gradual e crescente substituição dos processos tradicionais pelos
eletrônicos que vem ocorrendo em todos os tribunais,
exigindo, a cada dia que passa maior preparo,
especialização e nível de conhecimento de seus servidores.”
(grifei)
Ora, é justamente isso que se argumenta sobre a necessidade política de exigência de nível superior para o ingresso nos cargos do Judiciário. Na prática, os que já pertencem à carreira, há muito tempo providenciaram a adequação à realidade fática. A Administração não teve que pegá-los pelo laço para se graduarem e se especializarem, eles mesmos tomaram a providência, justamente por ter amor pelo que fazem e por sentirem que a população, tão carente de justiça, precisa da boa prestação dos seus serviços.
Em seguida, complementa:
“Esse entendimento vem culminando com recentes manifestações
de autoridades dos tribunais superiores no sentido de que a
grande maioria das tarefas e atribuições dos servidores
não é mais compatível com o nível intermediário,
devendo as autoridades judiciárias evitar a realização
de concursos com referido grau de escolaridade e
passar gradualmente a realizar somente concursos para
cargo de nível superior (Analistas). (grifei)
Nesse ponto, tenho que discordar em parte. Se todos reconhecem que, quase a totalidade das tarefas e atribuições dos servidores não é mais compatível com o nível intermediário e que o quadro de servidores dos Tribunais é composto por mais de 60 % de Técnicos, como querem resolver o problema atual? Realizar concursos somente para Analistas não resolve o problema atual, posto que somente no decorrer de muitos e muitos anos o quadro de servidores estaria totalmente redefinido. Temos que observar o problema atual, que só pode ser resolvido com a modificação do quadro de técnicos para nível superior.
Entendo que relegar o cargo de técnico ao limbo do “esquecimento” é injusto, ilegítimo e não coaduna com o Estado Democrático de Direito, nem mesmo com os valores que sustentam a dignidade da nossa nação. Ora, até o momento, os Técnicos (mais de 60% do quadro) se especializaram, acompanharam a revolução tecnológica e ajudaram, junto com os Analistas, a carregar o Judiciário nas costas. Agora serão esquecidos, extintos?
No citado requerimento, citou-se uma manifestação do Ministro Otávio de Noronha, corregedor-Geral da Justiça Federal, o qual teria feito o seguinte pronunciamento . Veja-se:
“(…) O Técnico está com seus dias contados. Não vamos
aumentar o número de vagas de Técnicos. Vamos fazer
concurso prioritariamente agora para Analista, uma
mão de obra mais selecionada. Na medida em que
passamos pela informatização, precisamos focar
no maior número de pessoas na atividade-fim do Tribunal.
Não temos mais processos para carregar,
não tem mais carrinho, volumes, não tem carimbo
para bater mais no processo. Então o que precisamos agora é
voltar as pessoas para a atividade-fim”. (grifei)
Ora, será que todos conhecem realmente a realidade atual do Judiciário como um todo?
Quem foi que disse que o cargo de técnico foi criado para carregar processos, empurrar carrinhos e dar carimbos ? Quem foi que disse que os técnicos realizam essas funções? Se assim estivessem fazendo, estariam sob situação de assédio moral, pois a definição das atribuições do seu cargo, em nenhum momento, diz que esta é a tarefa do Técnico. A lei diz que o cargo de técnico tem como atribuição essencial a execução de tarefas de suporte Técnico e administrativo.
Dar suporte Técnico e administrativo é, segundo os regulamentos dos Tribunais (Resoluções): a) Executar atividades de pesquisa, organização e armazenamento de legislação, jurisprudência e doutrina; b) Instruir procedimentos judiciais e administrativos, elaborando relatórios, informações, atos e documentos ; etc.
Em nenhuma resolução, de qualquer tribunal, existe a especificação de que o cargo de técnico conterá como atribuição carregar processos, empurrar carrinhos ou carimbar expedientes. Pelo que eu saiba, tal atividade, hoje em dia, é realizada por funcionários terceirizados.
O requerente, por sua própria opinião, aduz que o Projeto de Lei 6232/2013 e a Lei 12991/2014 cria apenas cargos de Analistas, inferindo que tal criação de cargos é reflexo de uma tendência a ser seguida.
Tenho minhas dúvidas. Pode ser que o quadro de Técnicos naqueles órgãos já esteja a contento e que a rotatividade no cargo de Analista tenha sido maior, visto que muitos Analistas do STJ passaram (merecidamente) para concursos da Magistratura, Promotoria, Cargos no Legislativo etc.
Não se podem fazer alegações sem ter provas. Quando se quer interpretar teleologicamente uma lei (extrair dela a intenção do legislador), deve-se primeiramente buscar a sua “exposição de motivos”, pois lá constará a verdadeira intenção a ser interpretada.
Não se pode conjecturar e atribuir “tendências” sem um mínimo de respaldo técnico, a fim de convencer o Administrador quanto aos seus argumentos. Aqui fica essa crítica.
Mais à frente, o requerente argumenta a inconstitucionalidade do pleito dos técnicos quanto à valorização da carreira com a exigência de nível superior para o ingresso no cargo e revisão de sua tabela salarial. Coloca assim:
“Tendo em vista a inconstitucionalidade da proposta
e que ela tem como principal fundamento um fato real,
qual seja, o desvio de função, é que esta Associação vem
requerer providências ao Sr. Corregedor, para que o
TRE-MG não venha a ser apenado pela cúpula
do Poder Judiciário, em razão da existência
de inúmeras situações que caracterizam desvio de função e
para evitar que a “transposição” se torne realidade,
privilegiando situação de inconstitucionalidade e
desvalorizando ainda mais a carreira de Analista”.
Ora, quando se argui a inconstitucionalidade de um Instituto ou de um pleito, deve-se fundamentar tal arguição. O que há de inconstitucional no pleito dos Técnicos? Pelo contrário, inconstitucional é a situação de “desvio de função” ora levantada.
O STF (intérprete maior da Constituição) já respaldou em diversas situações a mudança de diversos cargos para nível superior, como por exemplo: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Cargos na Receita Federal.
O que se deve desconhecer é que o STF recentemente vem julgando constitucional esse tipo de pleito, senão veja-se a notícia dada pelo colega James Magalhães em artigo publicado na FENAJUFE[1]:
“O Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica, na primeira
sessão do ano de 2014, no dia 05/02, julgou improcedente a
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4303) movida
pelo Governo do RN contra a lei 372/08 – que passou os AT’s do
Judiciário Potiguar para nível superior.
A relatora do processo, ministra Carmen Lúcia, confirmou
a validade constitucional da norma questionada na ADI.
Segundo ela, a lei complementar passou a exigir nível superior
nos próximos concursos para os cargos de auxiliar técnico
e assistente (…) “( grifei)
Certamente os Técnicos, por sua assessoria jurídica especializada, saberão acompanhar bem os projetos de Lei que tenham como base a exigência de nível superior para o ingresso nas carreiras para que sua constitucionalidade não seja contestada.
DO DESVIO DE FUNÇÃO
Odesvio de função, ao contrário do que algumas poucas vozes afirmam, é a designação informal (e ilegal) do servidor para a realização de atividades mais complexas em outro cargo, para o qual não foi nomeado.
Esse desvio de função caracteriza uma apropriação indevida do fruto do trabalho do servidor pelo Estado, pois ele não está tendo a contraprestação pecuniária que lhe é de direito.
Este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
“Agravo regimental. Servidor Público. Desvio de Função.
Diferença remuneratória. Não infringência dos
arts. 458, II, e 535, II, do CPC. Ausência de prequestionamento
dos dispositivos ditos violados e acórdão em conformidade
com jurisprudência dominante no STJ.
3. O reconhecimento do desvio de função tem como
consequência lógica o pagamento das diferenças,
levando-se em conta a classe em que o serviço foi
efetivamente prestado. No caso, o Tribunal a qual
afastou o enriquecimento ilícito do Estado com
base nas provas dos autos. Infirmar tal posicionamento
esbarra no enunciado da Súmula nº 7/STJ. Precedente
da Terceira Seção que não se aplica ao caso em apreço.”
É sabido por quem opera com o Direito que a Justiça Comum, Federal ou Estadual, entende que, em ocorrendo desvio de função, o trabalhador está recebendo o salário decorrente do exercício de função diversa daquela em que trabalha, caracterizando-se, deste modo, uma lesão sucessiva, renovada, mês a mês, não havendo que se falar em ato único que lesa o direito do trabalhador.
Nesse passo, não se pode dizer que um “Analista”, quando não está exercendo todas as atividades inerentes ao seu cargo, estaria em “ desvio de função”, pois está recebendo devidamente pelo cargo pelo qual foi nomeado e, por conseguinte, nenhuma diferença salarial tem a receber.
Eventualmente, tanto o Técnico quanto o Analista que estiverem exercendo atividades totalmente diversas para o qual foram contratados, tais como: “servir cafezinho para Juiz; fazer faxina nos banheiros; carregar processos de cima pra baixo e de baixo pra cima”, podem e devem requerer a composição individual e específica dos danos de natureza moral e não pleitear “desvio de função”.
Seguindo a tese em torno do desvio de função, o requerente aduz:
“Quando se ocupa a chefia de cartório, o Técnico Judiciário
se vê obrigado a executar atividades de alta complexidade e
acaba por delegar aos Analistas Judiciários atividades de menor
complexidade, não previstas em lei, e que seriam de sua
(do técnico) competência. A consequência fática é a
permanente inversão das atribuições, e a afronta
aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade,
da moralidade e da eficiência.”
Ora, a Chefia de Cartório e outros cargos e funções comissionados são distribuídos por critérios de “confiança” e “merecimento”. A competência das pessoas não se mede pelo cargo que ocupam; essa não é a finalidade do “Cargo e da Função comissionada”.
Segundo informações extraídas de diversas pesquisas legais e jurisprudenciais:
“(1) aparentemente, os técnicos em questão têm a
formação especializada exigida pela chefia;
(2) a Lei 11416/2006, as portarias conjuntas e as resoluções
institucionais que regulam a matéria admitem que
técnicos com formação especializada exerçam
tais chefias. O analista não é o chefe natural
do técnico na estrutura de carreira, para essa
condição são destinadas FC e CJ que não são
exclusivas de analista e também de técnicos;
(3) se houver situação irregular (técnico sem formação
especializada na atividade que esteja exercendo a função),
então a chefia não poderia ocorrer.”
Critérios como caráter, humildade, capacidade de gerenciar recursos humanos e materiais são importantes quando se escolhe alguém para ser titular de uma “função de confiança” e não o simples fato de ser Analista ou Técnico, mesmo porque o requerente diz logo no início do seu requerimento: “com a crescente modernização da Justiça, mormente pela instituição do processo judicial eletrônico e pela gradual e crescente substituição de processos tradicionais pelos eletrônicos que vem ocorrendo em todos os tribunais, exigindo a cada dia que passa, maior preparo, especialização e nível de conhecimento dos seus servidores”.
Todos nós sabemos que, em certos casos, um Técnico Judiciário pode estar muito mais preparado intelectualmente do que um Analista, ou um Analista pode estar muito mais preparado do que um Juiz (e vejo muitos Analistas mais preparados do que Juiz). Por isso mesmo, são eles escolhidos “a dedo” pelos magistrados para ocuparem as funções de confiança de acordo com as suas capacidades intelectuais e sua habilidade para lidar com situações complexas.
Seria um absurdo impor ao Juiz que suas nomeações para cargo de confiança fossem feitas apenas dentro de determinado cargo. A uma, porque a composição dos tribunais se resume a mais de 60% de Técnicos. A duas, porque nem sempre o “melhor” para exercer determinada chefia é um Analista ou um técnico.
Continuando suas argumentações, o requerente defende que os Analistas estariam sendo obrigados a exercer atividades privativas de técnicos e não condizentes com o grau de dificuldade do concurso público ao qual se submeteram.
Ora, quem pode mais, pode menos. A não ser que estejam em flagrante situação que reflita assédio moral. E quem sabe mais, pode mais. (Notório saber).
Como já dito, se não há vedação legal para que o técnico seja nomeado para funções de confiança e se demonstra ter capacidade para executar as tarefas inerentes a tal função, que óbice há nisso?
Se o Analista que tem como atribuições exercer determinadas tarefas, mas se demonstra, em algum caso concreto, menos capaz do que o técnico, o que se pode fazer a respeito? Impor ao Juiz que o chame para exercer a função mesmo sabendo que há alguém mais capaz para desempenhá-la?
Tanto os Analistas quanto os técnicos devem lutar pela valorização de suas carreiras. O Técnico pleiteia que seja exigido para o ingresso na carreira o nível superior adequado às situações de fato que hoje se verificam e o Analista deve pleitear equiparação dos seus salários com aqueles mais altos de outros órgãos, como, por exemplo, os Assessores do Legislativo.
Não só isso. O Analista pode e deve requerer melhores condições de trabalho; que seu adicional de qualificação seja pago sobre o valor do maior salário da carreira; Que exerça funções inerentes ao cargo para o qual foi nomeado. Tudo isso, sem precisar reduzir os direitos dos técnicos.
Entendo que, em alguns casos concretos, podem haver situações que configurariam até assédio moral, quando um Analista, por exemplo, está exercendo atividades degradantes ou humilhantes. No entanto, tem ele as armas para rechaçar, individualmente, tal conduta por parte do administrador: entrando com ação indenizatória; entrando com ação de obrigação de exercer atividades inerentes ao seu cargo.
Os técnicos certamente apoiarão todos os pedidos dos Analistas que não se contraponham aos seus interesses. Digo e repito: Não é necessário “pisar” nos Técnicos para obter vantagens para o cargo de Analista. Tenho certeza de que nenhuma representação dos técnicos tenha protocolizado um requerimento administrativo ou ação judicial que vise reduzir os direitos dos Analistas. Assim, não é justo (isso acho que é senso comum) que ao contrário se faça.
Quantos são os locais de trabalho no Judiciário Federal em que se veem Técnicos e Analistas com Mestrado e Doutorado, professores em Universidades e que estão exercendo Cargos Comissionados? Será que estão nesses cargos apenas por conveniência da Administração ou por meritocracia?
CONCLUSÃO
Quero deixar claro que esse texto é uma manifestação do meu pensamento e não tem o condão de “puxar a corda” nem para um lado e nem para outro. Pertenço a um Sindicato que defende os interesses da categoria como um todo. Por isso, luto pelos direitos dos Analistas, dos Técnicos, dos Auxiliares, dos Agentes de Segurança, dos Oficiais de Justiça e dos Aposentados.
Assim, o objetivo deste artigo é conclamar todos à União. Deixando claro, porém, que defenderei minhas opiniões livremente sempre que entender que alguma injustiça é cometida com qualquer das classes que represento.
[1] GONÇALVES, James Magalhães. http://www.fenajufe.org.br/index.php/imprensa/artigos/1775-stf-em-decisao-historica-considera-constitucional-passar-cargo-de-tecnico-para-nivel-superior